O Supremo Tribunal Federal entendeu ser inconstitucional a chamada execução provisória da pena privativa de liberdade, ou seja, a sua concretização antes do trânsito em julgado de decisão penal condenatória, por violação à dignidade humana e ao princípio constitucional da presunção de inocência. Em julgamento histórico fomentado por voto vencedor do Ministro Eros Grau, o STF reviu entendimento até então vigente.Veja abaixo a ementa e a íntegra do voto vencedor desse paradigmático Acórdão:
05/02/2009 TRIBUNAL PLENOHABEAS CORPUS 84.078-7 MINAS GERAISRELATOR : MIN. EROS GRAUPACIENTE(S) : OMAR COELHO VITORIMPETRANTE(S) : OMAR COELHO VITORADVOGADO(A/S) : JOÃO EDUARDO DE DRUMOND VERANO EOUTRO(A/S)ADVOGADO(A/S) : LUÍS ALEXANDRE RASSICOATOR(A/S)(ES) : SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇAEMENTA: HABEAS CORPUS. INCONSTITUCIONALIDADE DACHAMADA “EXECUÇÃO ANTECIPADA DA PENA”. ART. 5º, LVII, DACONSTITUIÇÃO DO BRASIL. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. ART.1º, III, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL.1. O art. 637 do CPP estabelece que “[o] recursoextraordinário não tem efeito suspensivo, e uma vezarrazoados pelo recorrido os autos do traslado, osoriginais baixarão à primeira instância para a execução dasentença”. A Lei de Execução Penal condicionou a execuçãoda pena privativa de liberdade ao trânsito em julgado dasentença condenatória. A Constituição do Brasil de 1988definiu, em seu art. 5º, inciso LVII, que “ninguém seráconsiderado culpado até o trânsito em julgado de sentençapenal condenatória”.2. Daí que os preceitos veiculados pela Lei n.7.210/84, além de adequados à ordem constitucional vigente,sobrepõem-se, temporal e materialmente, ao disposto no art.637 do CPP.3. A prisão antes do trânsito em julgado dacondenação somente pode ser decretada a título cautelar.4. A ampla defesa, não se a pode visualizar demodo restrito. Engloba todas as fases processuais,inclusive as recursais de natureza extraordinária. Por issoa execução da sentença após o julgamento do recurso deapelação significa, também, restrição do direito de defesa,caracterizando desequilíbrio entre a pretensão estatal deaplicar a pena e o direito, do acusado, de elidir essapretensão.5. Prisão temporária, restrição dos efeitos dainterposição de recursos em matéria penal e puniçãoexemplar, sem qualquer contemplação, nos “crimes hediondos”exprimem muito bem o sentimento que EVANDRO LINS sintetizouna seguinte assertiva: “Na realidade, quem está desejandopunir demais, no fundo, no fundo, está querendo fazer omal, se equipara um pouco ao próprio delinqüente”.6. A antecipação da execução penal, ademais deincompatível com o texto da Constituição, apenas poderiaser justificada em nome da conveniência dos magistrados ---não do processo penal. A prestigiar-se o princípioconstitucional, dizem, os tribunais [leia-se STJ e STF]serão inundados por recursos especiais e extraordinários esubseqüentes agravos e embargos, além do que “ninguém maisserá preso”. Eis o que poderia ser apontado como incitaçãoà “jurisprudência defensiva”, que, no extremo, reduz aamplitude ou mesmo amputa garantias constitucionais. Acomodidade, a melhor operacionalidade de funcionamento doSTF não pode ser lograda a esse preço.7. No RE 482.006, relator o Ministro Lewandowski,quando foi debatida a constitucionalidade de preceito delei estadual mineira que impõe a redução de vencimentos deservidores públicos afastados de suas funções porresponderem a processo penal em razão da suposta prática decrime funcional [art. 2º da Lei n. 2.364/61, que deu novaredação à Lei n. 869/52], o STF afirmou, por unanimidade,que o preceito implica flagrante violação do disposto noinciso LVII do art. 5º da Constituição do Brasil. Issoporque --- disse o relator --- “a se admitir a redução daremuneração dos servidores em tais hipóteses, estar-se-iavalidando verdadeira antecipação de pena, sem que estatenha sido precedida do devido processo legal, e antesmesmo de qualquer condenação, nada importando que hajaprevisão de devolução das diferenças, em caso deabsolvição”. Daí porque a Corte decidiu, por unanimidade,sonoramente, no sentido do não recebimento do preceito dalei estadual pela Constituição de 1.988, afirmando de modounânime a impossibilidade de antecipação de qualquer efeitoafeto à propriedade anteriormente ao seu trânsito emjulgado. A Corte que vigorosamente prestigia o disposto nopreceito constitucional em nome da garantia da propriedadenão a deve negar quando se trate da garantia da liberdade,mesmo porque a propriedade tem mais a ver com as elites; aameaça às liberdades alcança de modo efetivo as classessubalternas.8. Nas democracias mesmo os criminosos sãosujeitos de direitos. Não perdem essa qualidade, para setransformarem em objetos processuais. São pessoas,inseridas entre aquelas beneficiadas pela afirmaçãoconstitucional da sua dignidade (art. 1º, III, daConstituição do Brasil). É inadmissível a sua exclusãosocial, sem que sejam consideradas, em quaisquercircunstâncias, as singularidades de cada infração penal, oque somente se pode apurar plenamente quando transitada emjulgado a condenação de cada qualOrdem concedida.A C Ó R D Ã OVistos, relatados e discutidos estes autos,acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em SessãoPlenária, sob a Presidência do Senhor Ministro GilmarMendes, na conformidade da ata de julgamentos e das notastaquigráficas, por maioria de votos, em deferir o habeascorpus, nos termos do voto do Relator.Brasília, 5 de fevereiro de 2009.EROS GRAU - RELATOR
INTEGRA
09/04/2008 TRIBUNAL PLENOHABEAS CORPUS 84.078-7 MINAS GERAISRELATOR : MIN. EROS GRAUPACIENTE(S) : OMAR COELHO VITORIMPETRANTE(S) : OMAR COELHO VITORADVOGADO(A/S) : JOÃO EDUARDO DE DRUMOND VERANO EOUTRO(A/S)ADVOGADO(A/S) : LUÍS ALEXANDRE RASSICOATOR(A/S)(ES) : SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇAR E L A T Ó R I OO SENHOR MINISTRO EROS GRAU: Trata-se de pedidohabeas-corpus substitutivo de recurso ordinário, com pedidode liminar, em que se atribui ao Superior Tribunal deJustiça constrangimento ilegal, consubstanciado nadenegação de habeas corpus cuja ementa tem o seguinte teor:“HABEAS CORPUS. PENAL. ACÓRDÃOCONFIRMATÓRIO DE CONDENAÇÃO DE PRIMEIRO GRAU.EXPEDIÇÃO DE MANDADO DE PRISÃO. LEGITIMIDADE.INOCORRÊNCIA DE OFENSA AO PRINCÍPIO DAPRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA, DADA A INEXISTÊNCIA EMREGRA, DE EFEITO SUSPENSIVO AOS RECURSOS DENATUREZA EXTRAORDINÁRIA.É assente a diretriz pretoriana no sentidode que o princípio constitucional da nãoculpabilidadenão inibe a constrição do statuslibertatis do réu com condenação confirmada emsegundo grau, porquanto os recursos especial eextraordinário são, em regra, desprovidos deefeito suspensivo.Precedentes do STF e do STJ.Ordem denegada.”2. O paciente foi denunciado pela prática do crimetipificado no artigo 121, § 2º, I e IV, c/c o artigo 14,II, todos do Código Penal. O Tribunal do Júri acolheu atese de homicídio privilegiado e o condenou a 3 (três) anose 6 (seis) meses de reclusão. Levado a novo Júri em virtudedo provimento da apelação do Ministério Público, o pacientefoi condenado a 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de reclusão,em regime integralmente fechado, posteriormente corrigidopara o inicialmente fechado pelo TJ/MG, no julgamento daapelação da defesa.3. Esta interpôs recursos extraordinário eespecial; este último foi admitido pelo Presidente doTribunal estadual.4. O Ministério Público requereu a prisãopreventiva antes da admissão do recurso especial porque opaciente é “... renomado produtor de leite nas paragens daComarca de Passos, dispondo de invejável plantel querepentinamente colocou à venda, ajustando leilão para opróximo dia 22/09/2001, onde propõe a ‘Liquidação Total doRebanho Holandês’, bem como de ‘Máquinas Agrícolas eEquipamentos de Leite’”; daí que “... pelo vulto dopatrimônio que está a disponibilizar, cotejado com odecreto condenatório confirmado em segundo grau dejurisdição, está ele a demonstrar seu intento de se fazerfurtar da aplicação da lei penal, mobilizando seupatrimônio de forma a facilitar sua evasão”.5. A prisão preventiva foi decretada em decisão doseguinte teor:“Acolho as ponderações da doutaProcuradoria de Justiça, constantes de fls.835/837, determinando que se expeça competentemandado de prisão em desfavor do réu OMARVITOR COELHO.”6. O impetrante alega que o móvel deste writ é ainidoneidade dos fundamentos da prisão cautelar; não apossibilidade da execução da sentença pendente de recursosem efeito suspensivo, no caso o Resp, tal como reconhecidopelo Ministro Fontes de Alencar ao julgar a medida cautelarque antecedeu o habeas-corpus impetrado naquela Corte. Emoutras palavras, o que se questiona é se há base empíricapara manter a prisão preventiva fundada na garantia daaplicação da lei penal; não a execução prematura dasentença condenatória, que deve ser afastada, sob pena deafronta ao princípio da inocência presumida.7. Restrita a tese à inaptidão do fundamento paraa prisão excepcional, o impetrante diz ser falsa a baseconcreta afirmada pelo Ministério Público estadual, eis quea intenção do paciente quando anunciou a liquidação de seusbens foi a de mudar de ramo, não a de furtar-se à aplicaçãoda lei penal, conforme se pode inferir dos documentoscomprobatórios dos gastos efetuados no exercício da novaatividade.8. Requer a concessão de liminar para sustar osefeitos do decreto de prisão preventiva, com a expedição desalvo-conduto. No mérito, pugna pelo deferimento do writ,confirmando-se a cautelar.9. O Ministro Nelson Jobim reconsiderou a decisãopela qual indeferira a liminar, concedendo-a (fls. 320/324)10. O Ministério Público Federal, em parecer dalavra do eminente Subprocurador-Geral da República HaroldoFerraz da Nóbrega, opina pela denegação da ordem (fls.339/344).É o relatório.V O T OO SENHOR MINISTRO EROS GRAU (Relator): A baseempírica de sustentação da prisão preventiva --- receio defrustração da aplicação da lei penal --- foi rechaçada peloMinistro Nelson Jobim, então relator. S. Excia. consideroua circunstância de o paciente ter alienado determinadosbens a fim de adquirir equipamentos e insumos necessáriosao desenvolvimento de nova atividade econômica.2. Afastado o fundamento da prisão preventiva, oencarceramento do paciente após o julgamento do recurso deapelação ganha contornos de execução antecipada da pena.3. Após votar pela denegação da ordem, na linha dajurisprudência da Corte, que afirma a inexistência de óbiceà execução da sentença quando pendente apenas recursos semefeito suspensivo, a Turma deliberou afetar a matéria aoPleno.4. Refletindo a propósito da matéria, estouinteiramente convicto de que o entendimento até agoraadotado pelo Supremo deve ser revisto.5. O artigo 637 do Código de Processo Penal ---decreto-lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1.941 ---estabelece que “[o] recurso extraordinário não tem efeitosuspensivo, e uma vez arrazoados pelo recorrido os autos dotraslado, os originais baixarão à primeira instância para aexecução da sentença”1.1 Exatamente esta é a redação do texto normativo; transcrevo-a entreaspas.6. A Lei de Execução Penal --- Lei n. 7.210, de 11de julho de 1.984 --- condicionou a execução da penaprivativa de liberdade ao trânsito em julgado da sentençacondenatória (artigo 1052), ocorrendo o mesmo com aexecução da pena restritiva de direitos (artigo 1473).Dispõe ainda, em seu artigo 1644, que a certidão dasentença condenatória com trânsito em julgado valerá comotítulo executivo judicial.7. A Constituição do Brasil de 1988 definiu, emseu artigo 5º, inciso LVII, que “ninguém será consideradoculpado até o trânsito em julgado de sentença penalcondenatória”.8. Daí a conclusão de que os preceitos veiculadospela Lei n. 7.210/84, além de adequados à ordemconstitucional vigente, sobrepõem-se, temporal ematerialmente, ao disposto no artigo 637 do CPP.9. No que concerne à pena restritiva de direitos,ambas as Turmas desta Corte vêm interpretando o artigo 147da Lei de Execução Penal à luz do texto constitucional, como que afastam a possibilidade de execução da sentença semque se dê o seu trânsito em julgado. Vejam-se as seguintesementas:2 Transitando em julgado a sentença que aplicar pena privativa deliberdade, se o réu estiver ou vier a ser preso, o juiz ordenará aexpedição de guia de recolhimento para a execução.3 Transitada em julgado a sentença que aplicou pena restritiva dedireitos, o juiz de execução, de ofício ou a requerimento doMinistério Público, promoverá a execução, de ofício ou a requerimentodo Ministério Público, promoverá a execução, podendo, para tanto,requisitar, quando necessário, a colaboração de entidades públicas ousolicitá-la a particulares.4 Extraída a certidão da sentença condenatória com trânsito em julgado,que valerá como título executivo judicial, o Ministério Públicorequererá, em autos apartados, a citação do condenado para, no prazode 10 (dez) dias, pagar o valor da multa ou nomear bens à penhora.“AÇÃO PENAL. Sentença condenatória. Penaprivativa de liberdade. Substituição por penarestritiva de direito. Decisão impugnadamediante agravo de instrumento, pendente dejulgamento. Execução provisória.Inadmissibilidade. Ilegalidade caracterizada.Ofensa ao art. 5º, LVII, da CF e ao art. 147da LEP. HC deferido. Precedentes. Penarestritiva de direitos só pode ser executadaapós o trânsito em julgado da sentença que aimpôs.”(HC n. 88.413, 1ª Turma, Cezar Peluso, DJde 9/6/2006).“HABEAS CORPUS. PENAS RESTRITIVAS DEDIREITOS. EXECUÇÃO ANTES DO TRÂNSITO EMJULGADO. IMPOSSIBILIDADE.O artigo 147 da Lei de Execução Penal éclaro ao condicionar a execução da penarestritiva de direitos ao trânsito em julgadoda sentença condenatória. Precedentes.Ordem concedida.”(HC n. 86.498, 2ª Turma, Eros Grau, DJ de19/5/2006).“EMENTA ‘HABEAS CORPUS’ – PENASRESTRITIVAS DE DIREITOS – IMPOSSIBILIDADE DESUA EXECUÇÃO DEFINITIVA ANTES DO TRÂNSITO EMJULGADO DA SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA –PEDIDO INDEFERIDO. – As penas privativas dedireitos somente podem sofrer execuçãodefinitiva, não se legitimando, quanto a elas,a possibilidade de execução provisória, eisque tais sanções penais alternativas dependem,para efeito de sua efetivação, do trânsito emjulgado da sentença que as aplicou. Lei deExecução Penal (art. 147). Precedente.”(HC n. 84.859, 2ª Turma, Celso de Mello,DJ de 14/12/2004).10. No mesmo sentido, os HHCC 84.587, 1ª Turma,Marco Aurélio, DJ de 19/11/2004; 84.677, 1ª Turma, ErosGrau, Rel. p/ o acórdão Cezar Peluso, DJ de 8/4/2005;84.741, 1ª Turma, Sepúlveda Pertence, DJ de 18/2/2005;85.289, 1ª Turma, Sepúlveda Pertence, DJ de 11/3/2005 e o88.741, 2ª Turma, Eros Grau, DJ de 4/8/2006.11. Ora, se é vedada a execução da pena restritivade direito antes do trânsito em julgado da sentença, commaior razão há de ser coibida a execução da pena privativade liberdade --- indubitavelmente mais grave --- enquantonão sobrevier título condenatório definitivo. Entendimentodiverso importaria franca afronta ao disposto no artigo 5º,inciso LVII da Constituição, além de implicar a aplicaçãode tratamento desigual a situações iguais, o que acarretaviolação do princípio da isonomia. Note-se bem que é àisonomia na aplicação do direito, a expressão originária daisonomia, que me refiro. É inadmissível que esta Corteaplique o direito de modo desigual a situações paralelas.12. Aliás a nada se prestaria a Constituição seesta Corte admitisse que alguém viesse a ser consideradoculpado --- e ser culpado equivale a suportar execuçãoimediata de pena --- anteriormente ao trânsito em julgadode sentença penal condenatória. Quem lê o textoconstitucional em juízo perfeito sabe que a Constituiçãoassegura que nem a lei, nem qualquer decisão judicialimponham ao réu alguma sanção antes do trânsito em julgadoda sentença penal condenatória. Não me parece possível,salvo se for negado préstimo à Constituição, qualquerconclusão adversa ao que dispõe o inciso LVII do seu artigo5o. Apenas um desafeto da Constituição --- lembro-me aquide uma expressão de GERALDO ATALIBA, exemplo de dignidade,jurista maior, maior, muito maior do que pequenos arremedosde jurista poderiam supor --- apenas um desafeto daConstituição admitiria que ela permite seja alguémconsiderado culpado anteriormente ao trânsito em julgado desentença penal condenatória. Apenas um desafeto daConstituição admitiria que alguém fique sujeito a execuçãoantecipada da pena de que se trate. Apenas um desafeto daConstituição.13. A prisão antes do trânsito em julgado dacondenação somente pode ser decretada a título cautelar.Lembro, a propósito, o que afirma ROGÉRIO LAURIA TUCCI5,meu colega de docência na Faculdade de Direito do Largo deSão Francisco: “o acusado, como tal, somente poderá ter suaprisão provisória decretada quando esta assuma naturezacautelar, ou seja, nos casos de prisão em flagrante, deprisão temporária, ou de prisão preventiva”6.14. A ampla defesa, não se a pode visualizar demodo restrito. Engloba todas as fases processuais,inclusive as recursais de natureza extraordinária. Por quenão haveria de ser assim? Se é ampla, abrange todas e nãoapenas algumas dessas fases. Por isso a execução dasentença após o julgamento do recurso de apelaçãosignifica, também, restrição do direito de defesa,caracterizando desequilíbrio entre a pretensão estatal deaplicar a pena e o direito, do acusado, de elidir essapretensão.15. Se tomarmos sob exame os textos normativosconstruídos no período compreendido pelos anos oitenta enoventa do século passado, discerniremos nítida oposiçãoentre o que se convencionou chamar de “garantismo”, na5 Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro, 2ªed., RT, São Paulo, 2.004, p. 281. Do mesmo autor, Limitação daextensão de apelação e inexistência de execução penal provisória, inRevista Brasileira de Ciências Criminais, n. 33 (ano 9), págs. 250-251.6 No mesmo sentido, FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO, Processo Penal,13ª. ed., São Paulo, Saraiva, 1.992, vol. 1, p. 63. “[...] enquantonão definitivamente condenado, presume-se o réu inocente. Sendo estepresumidamente inocente, sua prisão, antes do trânsito em julgado dasentença condenatória, somente poderá ser admitida a título decautela”.década de 80 [em 1.984, precisamente --- com a reformapenal --- e em 1.988, na Constituição do Brasil] e aprodução, na década de 90, de preceitos penais eprocessuais penais marcados, na dicção de ALEXANDREWUNDERLICH7, “pelo repressivo insano e pelo excesso decriações punitivas”.16. O modelo de execução penal consagrado nareforma penal de 1.984 confere concreção ao chamadoprincípio da presunção de inocência, admitindo ocumprimento da pena apenas após o trânsito em julgado dasentença penal condenatória. A Constituição de 1.988 dispõeregra expressa sobre esta matéria. Aqui, como observou oMinistro Cezar Peluso em voto na Reclamação 2.311, não érelevante indagarmos se a Constituição consagra, ou não,presunção de inocência. O que conta, diz ainda o MinistroCezar Peluso, é o “enunciado normativo de garantia contra apossibilidade de a lei ou decisão judicial impor ao réu,antes do trânsito em julgado de sentença penalcondenatória, qualquer sanção ou conseqüência jurídicagravosa que dependa dessa condição constitucional, ou seja,do trânsito em julgado da sentença condenatória”.17. Esse quadro foi alterado no advento da Lei n.8.038/90, que instituiu normas procedimentais atinentes aosprocessos que tramitam perante o Superior Tribunal deJustiça e o Supremo Tribunal Federal, ao estabelecer que osrecursos extraordinário e especial “serão recebidos noefeito devolutivo”. A supressão do efeito suspensivo dessesrecursos é expressiva de uma política criminalvigorosamente repressiva, instalada na instituição daprisão temporária pela Lei n. 7.960/89 e, logo em seguida,7 Muito além do bem e do mal: considerações sobre a execução penalantecipada, in Crítica à execução penal, [org. Salo de Carvalho],Lúmen Júris, Rio de Janeiro, 2.002, pág. 510.na edição da Lei n. 8.072/90, a “lei dos crimes hediondos”,alterada em 1.994 e em 1.9988. Prisão temporária, restriçãodos efeitos da interposição de recursos em matéria penal epunição exemplar, sem qualquer contemplação, nos “crimeshediondos” exprimem muito bem o sentimento que EVANDRO LINSsintetizou na seguinte assertiva: “Na realidade, quem estádesejando punir demais, no fundo, no fundo, está querendofazer o mal, se equipara um pouco ao próprio delinqüente”9.Essa desenfreada vocação à substituição de justiça porvingança denuncia aquela que em outra ocasião referi como“estirpe dos torpes delinqüentes enrustidos que,impunemente, sentam à nossa mesa, como se fossem homens debem”10.18. O casuísmo do legislador na elaboração da lei8.072/90 é o mesmo casuísmo do legislador da Lei n.8.038/90, determinado pela onda de extorsões medianteseqüestro, notadamente os casos Abílio Diniz, em São Paulo,e Roberto Medina, no Rio de Janeiro, e pela reação a que depronto deram causa. A crítica de ALBERTO SILVA FRANCO11 aoprimeiro aplica-se ao segundo: “É mister, portanto, que sedenuncie com eloqüência esta postura ideológica, querepresenta um movimento regressivo, quer no direito penal,quer no direito processual penal, quer ainda na própriaexecução penal. [...] Não basta a denúncia da posturaautoritária. É necessário o seu desmonte implacável. E issopoderá ser feito, sem dúvida, pelo próprio juiz na medidaem que, indiferente às pressões dos meios de comunicaçãosocial e à incompreensão de seus próprios colegas, tenha a8 Leis ns. 8.930/94 e 9.677/98.9 O salão dos passos perdidos, 3a impressão, Editora NovaFronteira, Rio de Janeiro, 1.997, pág. 219.10 Meu Do ofício de orador, 2ª edição, Editora Revan, Rio de Janeiro,2.006, pág. 72.11 Crimes Hediondos: anotações sistemáticas à Lei 8.072/90,4ª ed., São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2000, pp.98/99.coragem de apontar as inconstitucionalidades e asimpropriedades contidas na Lei 8.072/90”. A produçãolegislativa penal e processual penal dos anos 90 éfrancamente reacionária, na medida em que cede aos anseiospopulares, buscando punições severas e imediatas --- amalta relegando a plano secundário a garantiaconstitucional da ampla defesa e seus consectários. Emcertos momentos a violência integra-se ao cotidiano danossa sociedade. E isso de modo a negar a tese do homemcordial que habitaria a individualidade dos brasileiros.Nesses momentos a imprensa lincha, em tribunal de exceçãoerigido sobre a premissa de que todos são culpados atéprova em contrário, exatamente o inverso do que aConstituição assevera. É bom que estejamos bem atentos,nesta Corte, em especial nos momentos de desvario, nosquais as massas despontam na busca, atônita, de uma ética --- qualquer ética --- o que irremediavelmente nos conduz ao“olho por olho, dente por dente”. Isso nos incumbe impedir,no exercício da prudência do direito, para que prevaleçacontra qualquer outra, momentânea, incendiária, ocasional,a força normativa da Constituição. Sobretudo nos momentosde exaltação. Para isso fomos feitos, para tanto aquiestamos.19. A execução da sentença antes de transitada emjulgado é incompatível com o texto do artigo 5º, incisoLVII da Constituição do Brasil. Colho, em voto de S. Excia.no julgamento do HC 69.964, a seguinte assertiva doMinistro SEPÚLVEDA PERTENCE: “... quando se trata de prisãoque tenha por título sentença condenatória recorrível, deduas, uma: ou se trata de prisão cautelar, ou deantecipação do cumprimento da pena. (...) E antecipação deexecução de pena, de um lado, com a regra constitucional deque ninguém será considerado culpado antes que transite emjulgado a condenação, são coisas, data venia, que se‘hurlent de se trouver ensemble’”. Também o Ministro MARCOAURÉLIO afirmou, quando desse mesmo julgamento, aimpossibilidade, sem afronta ao artigo 5º da Constituiçãode 1.988, da “antecipação provisória do cumprimento dapena”. Aqui, mais do que diante de um princípio explícitode direito12, estamos em face de regra expressa afirmada,em todas as suas letras, pela Constituição. Por isso émesmo incompleta a notícia de que a boa doutrina temseveramente criticado a execução antecipada da pena. Aliás,parenteticamente --- e porque as palavras são mais sábiasdo que quem as pronuncia; porque as palavras são terríveis,denunciam, causticamente --- anoto a circunstância de ovocábulo antecipada, inserido na expressão, denotarsuficientemente a incoerência da execução assim operada.Retomo porém o fio da minha exposição repetindo serincompleta a notícia de que a boa doutrina tem severamentecriticado a execução antecipada da pena. E isso porque nahipótese não se manifesta somente antipatia da doutrina emrelação à antecipação de execução penal; mais, muito maisdo que isso, aqui há oposição, confronto, contraste bemvincado entre o texto expresso da Constituição do Brasil eregras infraconstitucionais que a justificariam, a execuçãoantecipada da pena.20. Não será certamente demasiada, no entanto, alembrança do quanto observa o Professor ANTONIO MAGALHÃESGOMES FILHO, meu colega também na Faculdade de Direito doLargo de São Francisco: “[a] vedação a qualquer forma deidentificação do suspeito, indiciado ou acusado à condiçãode culpado constitui, sem dúvida, o aspecto mais salienteda disposição constitucional do art. 5º, inc. LVII, na12 Vide meu Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação dodireito, 4ª edição, Malheiros Editores, 2.006, págs. 141 e ss.medida em que reafirma a dignidade da pessoa humana comopremissa fundamental da atividade repressiva do Estado.Embora não se possa esperar que a simples enunciação formaldo preceito traduza modificação imediata e substancial nocomportamento da sociedade – e mesmo dos atores jurídicos –em face daqueles que se vêem envolvidos com o aparatojudiciário-criminal, não é possível desconhecer que aConstituição instituiu uma verdadeira garantia detratamento do acusado como inocente até o trânsito emjulgado de sentença condenatória”13. E, mais, diz ainda eleem outro texto: “... não é legítima a prisão anterior àcondenação transitada em julgado, senão por exigênciascautelares indeclináveis de natureza instrumental e final,e depois de efetiva apreciação judicial, que deve virexpressa através de decisão motivada”14. A admissão daexecução provisória no sistema processual penal expressaabsoluta incongruência, qual anota SIDNEI AGOSTINHO BENETI,“porque não há como admitir, sem infringência a direitosfundamentais do acusado, principalmente a presunção deinocência e a garantia da aplicação jurisdicional da penacom observância do devido processo legal, que suporte ele,o acusado, a execução penal enquanto não declaradajudicialmente a certeza de que cometeu ele a infraçãopenal, o que só ocorre com o trânsito em julgado dasentença condenatória”15. E diz FERNANDO DA COSTA TOURINHOFILHO16: “se não há trânsito em julgado, a sentença penalnão pode ser executada (art. 105 da Lei de Execução Penal);a interposição do recurso extraordinário ou especial13 Significados da Presunção de Inocência, in Direito Penal Especial,Processo Penal e Direitos Fundamentais, coordenação de JOSÉ DE FARIACOSTA e MARCO ANTONIO MARQUES DA SILVA, Quartier Latin do Brasil, SãoPaulo, 2.006, pág. 326.14 Presunção de inocência e prisão cautelar, Saraiva, São Paulo, 1.991,pág. 86.15 Citado por ROGÉRIO LAURIA TUCCI, Direitos e Garantias Individuais noProcesso Penal Brasileiro, cit., pág. 283.16 Código de Processo Penal Comentado, 9ª. ed., revista, aumentada eatualizada, Saraiva, 2.005, págs. 465/466.impede, até final julgamento, o trânsito em julgado; não hátítulo a justificar prisão do réu anteriormente a essejulgamento”. “A prisão --- prossegue --- ou é definitiva ouprovisória. Aquela pressupõe sentença condenatória trânsitaem julgado; esta pode ser efetivada antes, mas nos casosprevistos em lei e desde que necessária (...)”.21. A antecipação da execução penal, ademais deincompatível com o texto da Constituição, apenas poderiaser justificada em nome da conveniência dos magistrados ---não do processo penal. A prestigiar-se o princípioconstitucional, dizem, os tribunais [leia-se STJ e STF]serão inundados por recursos especiais e recursosextraordinários, e subseqüentes embargos e agravos, além doque “ninguém mais será preso”. Eis aí o que poderia serapontado como incitação à “jurisprudência defensiva”, que,no extremo, reduz a amplitude ou mesmo amputa garantiasconstitucionais. A comodidade, a melhor operacionalidade defuncionamento desta Corte não pode ser lograda a essepreço.22. Uma observação ainda em relação ao argumentonos termos do qual não se pode generalizar o entendimentode que só após o trânsito em julgado se pode executar apena. Isso --- diz o argumento --- porque há casosespecíficos em que o réu recorre, em grau de recursoespecial ou extraordinário, sem qualquer base legal, emquestão de há muito preclusa, levantando nulidadesinexistentes, sem indicar qualquer prejuízo. Vale dizer,pleiteia uma nulidade inventada, apenas para retardar oandamento da execução e alcançar a prescrição. Não há nadaque justifique o RE, mas ele consegue evitar a execução.Situações como estas consubstanciariam um acinte edesrespeito ao Poder Judiciário. Ademais, a prevalecer oentendimento que só se pode executar a pena após o trânsitoem julgado das decisões do RE e do Resp, consagrar-se-á, emdefinitivo, a impunidade. Isso --- eis o fecho de ouro doargumento --- porque os advogados usam e abusam de recursose de reiterados habeas corpus, ora pedindo a liberdade, oraa nulidade da ação penal. Ora --- digo eu agora --- aprevalecerem essas razões contra o texto da Constituiçãomelhor será abandonarmos o recinto e sairmos por aí, cadaqual com o seu porrete, arrebentando a espinha e a cabeçade quem nos contrariar. Cada qual com o seu porrete! Nãorecuso significação ao argumento, mas ele não serárelevante, no plano normativo, anteriormente a uma possívelreforma processual, evidentemente adequada ao que dispusera Constituição. Antes disso, se prevalecer, melhorrecuperarmos nossos porretes...23. Nas democracias mesmo os criminosos sãosujeitos de direito. Não perdem essa qualidade, para setransformarem em objetos processuais. São pessoas,inseridas entre aquelas beneficiadas pela afirmaçãoconstitucional da sua dignidade. É inadmissível a suaexclusão social, sem que sejam consideradas, em quaisquercircunstâncias, as singularidades de cada infração penal, oque somente se pode apurar plenamente quando transitada emjulgado a condenação de cada qual.25. Devo manifestar, por fim, certeza e absolutasegurança em que esta Corte prestará o devido acatamento àConstituição. E faço referência, a propósito, não apenas adecisões atinentes à afirmação da liberdade, mas a outra,bem recente, de 7 de novembro de 2.007. Desejo aludir ao RE482.006, relator o Ministro Lewandowski, quando foidebatida a constitucionalidade de preceito de lei estadualmineira que impõe a redução de vencimentos de servidorespúblicos afastados de suas funções por responderem aprocesso penal em razão da suposta prática de crimefuncional [art. 2º da Lei n. 2.364/61, que deu nova redaçãoà Lei n. 869/52]. Decidiu-se então, por unanimidade, que opreceito implica flagrante violação do disposto no incisoLVII do art. 5º da Constituição do Brasil. Isso porque ---disse o relator --- “a se admitir a redução da remuneraçãodos servidores em tais hipóteses, estar-se-ia validandoverdadeira antecipação de pena, sem que esta tenha sidoprecedida do devido processo legal, e antes mesmo dequalquer condenação, nada importando que haja previsão dedevolução das diferenças, em caso de absolvição”. Daíporque a Corte decidiu, por unanimidade, sonoramente, nosentido do não recebimento do preceito da lei estadual pelaConstituição de 1.988. Afirmação unânime, como se vê, daimpossibilidade de antecipação de qualquer efeito afeto àpropriedade, anteriormente ao seu trânsito em julgado, adecisão com caráter de sanção. Ora, a Corte quevigorosamente prestigia o disposto no preceitoconstitucional em nome da garantia da propriedadecertamente não o negará quando se trate da garantia daliberdade. Não poderá ser senão assim, salvo a hipótese deentender-se que a Constituição está plenamente a serviço dadefesa da propriedade, mas nem tanto da liberdade... Afinalde contas a propriedade tem mais a ver com as elites; aameaça às liberdades alcança de modo efetivo as classessubalternas.Concedo a ordem para determinar que o pacienteaguarde em liberdade o trânsito em julgado da sentençacondenatória.
Nenhum comentário:
Postar um comentário