sexta-feira, 27 de março de 2009

Alguns comentários sobre a Teleconferência no Processo Penal Brasileiro

Amigos,
Já no ano de 2002 o Prof. Paulo Rangel já chamada a atenção para a absurda idéia de despersonalização do direito processual penal. Pois neste ano, mais precisamente no mês de janeiro, com a chegada da Lei 11.900/09, já somada a possibilidade de oitiva "on-line" trazida em 2008, nos deparamos com mais esta aberração que corrobora a seletividade já apontada pela Criminologia Crítica. Diga-se de passagem, que a imensa maioria dos autores de PP tem entendido pela sua insconstitucionalidade. Nossa esperança é de que rapidamente o Supremo Tribunal Federal assim também entenda.

Boa leitura a todos e um ótimo final de semana,

Prof. Luiz Fernando


TELECONFERÊNCIA (OU VÍDEOCONFERÊNCIA)




PAULO RANGEL



O direito penal e o processual penal, diferentemente do que muitos pensam, são instrumentos de garantia e não de punição de uma sociedade, pelo menos enquanto em um Estado Democrático de Direito. O direito penal tipifica condutas que o Estado entende que, necessariamente, devem ser proibidas. O processo penal garante que todos os direitos previstos na Constituição serão assegurados aos acusados a fim de que, se não houver alternativa, o réu seja condenado. A regra é a liberdade, a prisão a exceção. E aqui um primeiro registro: seja o acusado um burguês, seja ele um plebeu, a Constituição é uma só. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho1 sempre disse que: prisão não foi feita para rico nem para pobre. Prisão foi feita para culpado, seja rico seja pobre. Nesse mecanismo de garantia, o acusado tem o direito de se entrevistar, pessoal e publicamente, com seu juiz natural, em um ambiente sadio, livre de pressões, aos olhos protetivos e/ou críticos do povo certo de que seu depoimento é conseqüência do exercício amplo de sua defesa. É lamentável, mas é verdade: muitos operadores jurídicos desconhecem a Convenção Americana dos Direitos Humanos, chamada de Pacto de São José da Costa Rica 2 que foi assinada em 1969 e ratificada em 1992, ou se conhecem não lhe dão o efetivo cumprimento. In verbis ela diz:
ARTIGO 8Garantias Judiciais1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.d) direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor;5. O processo penal deve ser público, salvo no que for necessário para preservar os interesses da justiça. À medida em que o acusado é interrogado por teleconferência, longe do ambiente físico do tribunal, conseqüência da garantia constitucional, efetiva, do juiz natural, violam-se os direitos de ampla defesa, da dignidade da pessoa humana, da igualdade de todos perante a lei e da colheita de prova de forma lícita. O preso assistirá ao depoimento das testemunhas por videoconferência, ou seja, a prova colhida não será nos exatos limites do texto constitucional. E aqui um segundo registro: esse preso é o plebeu perigoso, mas não o burguês perfumado. Precisamos deixar de ser cínicos. Faço um terceiro registro: queremos afastar do nosso convívio, mesmo que no tribunal, os acusados pobres que criamos como perigosos. Entretanto, o burguês perfumado, autor de crimes de evasão de divisas, de corrupção, de colarinho branco e de sonegação fiscal pode se entrevistar, pessoalmente, com o juiz, porque no imaginário popular ele não é perigoso. Dizer, por exemplo, que fraudadores do INSS que lesaram os cofres públicos em milhões de reais, ou ainda, que os autores dos crimes cometidos em detrimento das obras do TRT-SP não são perigosos é ter um conceito estrito de perigo social. O conceito de réu perigoso pode variar muito dependendo do local de onde se fala. Se falamos comprometidos apenas com nós mesmos, perigoso é o outro, mas se nosso discurso é comprometido com a Constituição da República todos somos perigosos. É uma questão de referência. Na verdade, por cinismo e hipocrisia sociais, não queremos reconhecer que os maiores marginais, as vezes, estão do nosso próprio lado sentado em cadeiras de grande relevância na estrutura hierárquica do Estado. O que, então, nos difere deles? O tipo de arma. A nossa, em regra, é a caneta e o papel. A deles, a arma de fogo e/ou punhal. Não podemos confundir inoperância técnica com gasto público, ou seja, se um determinado preso é levado ao Fórum por 200 policiais isso é a constatação de que o Estado coloca a quantidade acima da qualidade. Policiais, altamente treinados e, principalmente, motivados podem fazer o transporte do preso sem risco a quem quer seja. Porém, a cada dia mais nasce a falsa sensação de que o direito penal irá salvar a sociedade da violência. Se fosse assim, nos EUA, onde em alguns estados há as penas de morte e de prisão perpétua, não existiriam crimes3 . Basta ter dois neurônios e olhar para o sistema penal privatizado americano: dois milhões de presos. Quanto mais presos maior o ganho financeiro dos empresários do setor carcerário. A prisão passa a ser um grande negócio financeiro e o Brasil é um campo fértil em face dos dados alarmantes da ONU. Dados do Instituto Latino-Americano da ONU para a Prevenção do Crime e Tratamento do Criminoso nos informa que de 28 países analisados há o seguinte quadro4:
a) explosão carcerária nesses países nos anos 90;b) os sistemas penitenciários desses países funcionam negativamente em matéria de saúde, higiene, alimentação, recreação, capacitação profissional, trabalho, segurança, etc.c) No início de 1990 tínhamos mais ou menos 90.000 presos; em 1999 eles totalizavam 195.000; em 2002 já passamos a casa dos 250.000 presos;d) o Brasil é um dos Países de maior crescimento penitenciário: de 1990 à 2002 aumentou 160% sua população carcerária;e) o Brasil tem um dos maiores índices de presos cautelares dos países investigados: cerca de 36% do total dos presos cautelares desses 28 países estão no Brasil.f) O número de vagas não comporta o contingente carcerário havendo, atualmente, uma espécie de genocídio carcerário; Contudo, canso de ouvir: no Brasil as leis são leves e não punem. Precisamos implementar leis mais severas para conter a onda de crimes. Se não pune, por que esse quadro clínico horrível nas penitenciárias? Por que nossos presídios estão com quase 100% de sua capacidade lotada? O que se quer, na voz de Loïc Wacquant, é a "Globalização da tolerância zero enquanto instrumento de legitimação da gestão policial e judiciária da pobreza que incomoda". Basta vermos o Jornal O Globo de 23/10 último em que mendigos foram recolhidos nas ruas com violência pela guarda municipal como forma de "controle urbano". É a repristinação da época em que se perseguiam os escravos, os espíritas, os leprosos e todos aqueles que representavam perigo para a sociedade. Zaffaroni, do alto de seu magistério, prelecionando sobre o organicismo positivista como ideologia do capitalismo diz que:
O homem era uma coisa entre outras coisas, e existiam os de melhor e de pior qualidade. Os de pior qualidade, os "degenerados" e biologicamente deficientes, caíam na escala social, por um processo de decantação"natural", e, deviam ser controlados pelos que se mantinham no poder, pois se convertiam em uma "classe social perigosa". O "crime" era a manifestação de uma inferioridade, que nem sempre podia ser corrigida (em tal caso impunha-se eliminar ou segregar definitivamente o portador). O grupo de poder era quase invulnerável a tais "sanções", pois sua "superioridade genética" ou "biológica" o preservava. Somente por acidente, algum de seus integrantes poderia ser atingido. O que significa dizer que o ensinamento é bem atual embora tratando de época distante do atual minimalismo penal ou da intervenção mínima do Estado que, penso, deve ser adotado. E aqui uma confissão: tenho medo sim, mas de um Estado policial, autoritário, racista, desigual e descompromissado com as políticas públicas sérias de um verdadeiro Estado Democrático de Direito. Tenho medo de acordar, abrir minha porta e dar de cara com um AI5 disfarçado de democrata.




PAULO RANGEL


Doutor em Direito pela UFPR


Mestre em Ciências Penais pela UCAM


Promotor de Justiça e professor de direito processual penal da UCAM

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