segunda-feira, 9 de março de 2009

VIOLÊNCIA URBANA E TOLERÂNCIA ZERO: VERDADES E MENTIRAS

Autor: Aury Lopes Jr.
Doutor em Direito Processual pela Universidade Complutense de Madrid
Professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUC/RS.



A sociedade brasileira tem convivido nos últimos anos com uma alta taxa de criminalidade urbana, geradora de um fundado sentimento de temor e insegurança. Recentemente, alguns setores do governo têm postulado pela adoção do famoso programa nova-iorquino de “tolerância zero”, como um modelo a ser seguido no Brasil. O plano americano é reflexo do chamado direito penal máximo, segundo o qual, em síntese, todas as condutas ilícitas, por mais irrelevantes que sejam, devem ser objeto de apenamento, as penas devem ser mais longas, os regimes de cumprimento mais rígidos e as possibilidades de benefícios menores. Como conseqüência, o processo penal deve ser mais célere e utilitarista, no sentido de diminuir as garantias processuais do cidadão em nome do interesse estatal de mais rapidamente apurar e apenar condutas. Esse discurso, quando levado a cabo por políticos hábeis e demagogos, acaba gerando na população o equivocado sentimento de que o programa de tolerância zero é a solução para todos os males.
Nada mais falacioso. O modelo de tolerância zero é fruto de uma equivocadíssima política repressivista norte-americana, chamada de movimento do law and order (movimento da lei e da ordem). O law and order prega a supremacia estatal e legal em franco detrimento do indivíduo e de seus direitos fundamentais. O Brasil já foi contaminado por esse modelo repressivista há mais de 10 anos, quando a famigerada Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8072/90), seguida de outras na mesma linha, marcou a entrada do sistema penal brasileiro na era da escuridão, na ideologia do repressivismo saneador. A idéia de que a repressão total vai sanar o problema é totalmente ideológica e mistificadora. Sacrificam-se direitos fundamentais em nome da incompetência estatal em resolver os problemas que realmente geram a violência.
Exemplo claro do fracasso nos dá o próprio modelo brasileiro. Basta questionar: com o advento da lei dos crimes hediondos (e posteriores) houve uma diminuição no número de delitos graves (latrocínios, seqüestros, tráfico de entorpecentes, etc.)? A política de aumentar penas e endurecer o regime de cumprimento diminuiu as taxas de criminalidade urbana? Obviamente que não. A cada dia ocorrem mais delitos de latrocínio, seqüestros (agora na sua versão “relâmpago”) e o tráfico de entorpecente cresce de forma alarmante, apenas para dar alguns poucos exemplos.
Nos Estados Unidos, o marketing de que a redução da criminalidade urbana em Nova York foi conseqüência da política de tolerância zero, é severamente criticada. É pura propaganda enganosa. Não é prendendo e mandando para a prisão mendigos, pichadores e quebradores de vidraças que a macro-criminalidade vai ser contida. As taxas de criminalidade realmente caíram em Nova York, mas também decresceram em todo o país, porque não é fruto da mágica política nova-iorquina, mas sim de um complexo avanço social e econômico daquele país. É fato notório que os Estados Unidos têm vivido nas últimas décadas uma eufórica evolução econômica, com aumento da qualidade de vida e substancial decréscimo dos índices de desemprego. Nisto está a resposta para a diminuição da criminalidade: crescimento econômico, sucesso no combate ao desemprego e política educacional eficiente.
Ademais, o modelo de tolerância zero é cruel e desumano. Os socialmente etiquetados sempre foram os clientes preferenciais da polícia e, com o aval dos governantes, nunca se matou, prendeu e torturou tantos negros, pobres e latinos. A máquina estatal repressora é eficientíssima quando se trata de prender e arrebentar hiposuficientes.
Como aponta Vera Malaguti de Souza (Discursos Sediciosos. Freitas Bastos, 1997) a mensagem do prefeito de Nova York foi muito bem entendida pelos policiais que, ao torturarem Abner Louima, afirmaram: stupid nigger...know how to respect cops. This is Giuliani time. It is not Dinkins times” (crioulo burro...aprenda a respeitar a polícia. Esse é o tempo de Giuliani. Não é mais tempo de Dinkins [ex-prefeito negro de NY]). Essa é a face cruel do modelo, pouco noticiada.
A criminalidade é fenômeno social complexo, que decorre de um feixe de elementos, onde o que menos importa é o direito e a legislação penal. A pena de prisão está completamente falida, não serve como elemento de prevenção, não reeduca e tampouco ressocializa. Como resposta ao crime, a prisão é um instrumento ineficiente e que serve apenas para estigmatizar e rotular o condenado, que, ao sair da cadeia, encontra-se em uma situação muito pior do que quando entrou. Se antes era um desempregado, agora é um desempregado e ex-presidiário. Dessarte, a prisão deve ser reservada para os crimes graves e os criminosos perigosos. Não deve ser banalizada.
Devemos questionar, ainda, porque o modelo escolhido foi o americano se, por exemplo, o inglês é muitíssimo mais eficiente? A polícia inglesa é o extremo oposto da americana. Policiais desarmados, educados e próximos da população. Sem dúvida uma instituição típica de um Estado Democrático de Direito. Sua eficiência é motivo de orgulho para os ingleses. Mas isso é muito difícil para nossos incompetentes governantes, acostumados a fazer prevalecer a força em detrimento da razão.
Em definitivo, estamos sendo vítimas de uma propaganda enganosa, que nos fará mergulhar numa situação ainda mais caótica. É mais fácil seguir no caminho do direito penal simbólico, com leis absurdas, penas desproporcionadas e presídios superlotados, do que realmente combater a criminalidade. Legislar é fácil e a diarréia legislativa brasileira é prova inequívoca disso. Difícil é reconhecer o fracasso da política econômica, a ausência de programas sociais efetivos e o descaso com a educação. Ao que tudo indica, o futuro será pior, pois os meninos de rua que proliferam em qualquer cidade brasileira, ingressam em massa nas faculdades do crime, chamadas de Febem. A pós-graduação é quase automática, basta completar 18 anos e escolher algum dos superlotados presídios brasileiros, verdadeiros mestrados profissionalizantes do crime.

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